Sempre ouvi de meus professores que eu deveria apresentar meus trabalhos, escrever meus textos ou responder as questões com minhas próprias palavras. Pensei então, no quanto difícil isso seria. Não que eu não soubesse o que eles queriam dizer com isso, mas a verdade é que era muito difícil descrever algo com minhas próprias palavras, já que todas as palavras que eu sabia não eram minhas.
Apesar de tanto pensar sobre
isso, nunca consegui entender o porquê de todas as palavras que eu sabia já
terem sido faladas por outra pessoa. Decidi então buscar o motivo, a resposta
para a então grande questão da minha vida.
Devorando os livros
infanto-juvenis, passando horas e horas debaixo das cobertas apenas com a
cabeça e a mão segurando o livro para o lado de fora do edredom, tive contato
com vários mundos e várias pessoas até então desconhecidas, tive emoções boas e
ruins, todas através das palavras de outra pessoa, que se fixavam na minha
mente de forma integral.
O tempo passava e eu me
questionava sobre o porquê de minhas próprias palavras não existirem. Seria
falta de personalidade própria? Seria mesmo que eu realmente não tinha dom,
vocação, ou sequer uma pequena inclinação para a coisa? Já não estava contente
com essa falta de respostas.
Numa dessas tardes de devaneio,
peguei o papel e a caneta para ver se conseguia rabiscar algumas palavras,
alguma coisa vinda de dentro, do fundo da alma, assim como lia nas poesias
antigas de Drummond. Cheguei a pensar que o ópio de muitos autores talvez
pudesse ter-lhes trago alguma inspiração, alguma lente de contatos que pudessem
abrir a visão para um mundo novo, um novo conceito de realidade descrita com
minhas próprias palavras. Cheguei até a esboçar alguma coisa, mas não consegui
dar continuidade, afinal, não havia o que escrever, não havia o que contar.
Decidi então sair.
Caminhando pela beirada do rio,
observando a paisagem calma e serena de um lado e a cena mais tumultuada, suja
e barulhenta do outro lado da rua onde carros, caminhões, motos e tudo o mais
que pudesse tirar a paz de um sujeito em busca de um pouco de natureza. Eu não
conseguia entender como esses dois polos tão diferentes poderiam estar tão
perto.
Avistei então, entre as árvores
- mais para o lado do rio que para o lado da pista - um banco de madeira livre
e decidi me sentar. O banco estava vazio, mas havia lugar ali para mais duas
pessoas. Aproveitei para me acomodar como queria e observar um pouco o rio e
suas curiosidades, havia tempo que eu tinha estado ali. Vagando em devaneios,
quase me esqueci da hora, já estava entardecendo e o sol começava a baixar.
Olhei para a linha vermelha do horizonte admirando a perfeição com que os
detalhes da natureza eram mostrados todos os dias, então quando me virei
novamente, avistei ao meu lado um homem.
No começo não me preocupei
muito, ali não era um lugar perigoso e havia muita gente passando por ali
naquele momento, mas o homem parou bem na minha frente e pediu para se sentar.
Seus óculos escuros não se curvaram na minha direção, continuaram direcionados
para o horizonte, foi então que eu pude perceber que ele era cego. Então,
cheguei para o canto e disse que sim, o homem devagarzinho se sentou ao meu
lado e tirou uma sacola da pochete que
carregava na cintura. Um por um, começou a jogar pequenos pedacinhos de pão de
milho para os passarinhos que ali pousavam.
Aquilo me despertou o interesse.
Apesar de ser cego, o homem sabia que eu estava sentada no banco e sabia também
que ali havia passarinhos para comer suas migalhas. Como isso seria possível?
Então decidi perguntar, entre tantas dúvidas, aquela eu não poderia deixar
passar.
“Como o senhor sabia que eu estava sentada no banco?” – Perguntei. O
homem colocou um dos pedacinhos de pão na própria boca e só respondeu quando
acabou de mastigar.
“Eu vi.” – Respondeu o homem com a mesma calma com que mastigava.
Aquilo me encabulou.
“Viu? Mas o senhor não é.....” – Antes que eu pudesse continuar a
frase o homem completou-a para mim.
“Cego? Completamente.” – Colocou outra migalha na boca e só
continuou a falar depois de engolir. “Mas
sou cego só com os olhos.”
Aquelas palavras me atordoaram.
Como ele poderia dizer essas coisas com tanta convicção? Como ele poderia
enxergar se não fosse com os olhos? No meu silêncio imaginei o que o homem
teria vindo fazer ali, o que o atraiu ali, logo onde eu estava?
“Vim passar o entardecer, como faço todos os dias” – Começou o homem
vagarosamente enquanto eu o fitava com olhar de gavião, curiosíssima a respeito
daquele completo estranho. – “E nunca te
encontrei por aqui. Você me parece um tanto quanto atordoada. O que te
preocupa?”
Impossível. Ele não era cego. Eu
estava disposta a ir onde fosse para provar para mim mesma que aquele homem não
era cego. Na verdade eu desconfiava também de que ele não era nem humano.
“Vim passear, estava precisando respirar, sair de casa.” – Respondi
entre os dentes. Ele não entenderia o que eu estava passando, afinal, não tinha
sentido um cego ler ou escrever.
“Isso é um tanto quanto clichê, todos que passam por aqui sempre estão
em busca de paz, coisa que parecem não encontrar em casa.” – Disse o homem
com propriedade, tão certo do que falava que me surpreendeu.
“Alguém te falou isso?” – Perguntei ao homem me sentando mais perto
e observando os pombos que estavam se aglomerando no chão. Eu odiava pombos,
nunca vi animais mais porcos. Talvez ele não pudesse perceber, mas tinha tanta
migalha no chão que os pombos começavam a fazer uma festa particular.
“Não, eu mesmo percebo. Não preciso que alguém me fale algo para sair
repetindo, menina. O que há com você? Não sou um monstro de outro planeta, sou
apenas... cego.” – Apenas cego! Ok. Era o suficiente. Como uma pessoa que
era apenas cega poderia me dizer tais
coisas com tanta riqueza de detalhes?
“Mas como sabe de tudo o que acontece a sua volta? Como consegue
descrever tudo com tanta... poesia, mesmo sem enxergar nada?” – Questionei
buscando finalmente uma resposta. O homem pela primeira vez me pareceu surpreso
com alguma coisa que eu dissera, guardou o saco de migalhas e cruzou as mãos em
cima do colo.
“Posso não enxergar com os olhos, mas tenho algo dentro de mim que nada
irá tirar. Já vivi um pouco antes de me tornar cego, e o pouco que vi me
mostrou que a vida precisa de um toque doce para sair da inércia.” – Disse-me
o homem devagar, depois coçou a barba por fazer e suspirou. – “Talvez se eu tivesse meus olhos não teria
tanta coisa para dizer.”
“Como assim?” – Questionei-o. Eu ficava a cada momento mais confusa
com aquilo tudo.
O homem suspirou, parecia
procurar as palavras apropriadas, ou talvez as próprias palavras. Tudo nele me
parecia um tanto quanto estranho, diferente, até a atmosfera ao seu redor era
mais macia, menos densa. Em determinado momento até os pombos deixaram de me
incomodar.
“ Quando se tem olhos, costumamos pensar que todas as coisas que há no
mundo estão ao alcance de nós só porque nós podemos vê-las. Mas não estão. – Disse
o homem. – Devemos tocar, devemos tocar o
barro para saber que textura tem. Devemos saborear a maçã para saber que gosto
tem. Não adianta que nos falem como é o doce, nunca vamos saber se até hoje só
provamos coisas de sal.”
“Então tudo o que diz é com suas próprias palavras? Ou melhor, tudo o
que você diz é derivado daquilo que já experimentou?” – Perguntei
finalmente chegando ao ponto onde queria. Fazendo pela primeira vez a pergunta
adequada, já não me preocupando mais se o homem era estranho ou não.
“Claro. Como não se pode enxergar com os olhos de alguém, não se pode
também viver experiências de outras pessoas. – Respondeu-me – Se realmente quer encontrar suas próprias
palavras, não se restrinja a ler as experiências alheias. Viva suas
experiências e as escreva, assim, essas serão suas próprias palavras.”
Quando terminou de falar o homem
virou a cabeça em minha direção como se realmente
conseguisse me enxergar. Tirou os olhos, o que me permitiu ver o azul de seus
olhos. Era realmente uma pena que olhos tão bonitos não pudessem enxergar tudo
de belo que há no mundo. Após aquele encontro, quase todos os dias eu estava
naquele banco daquele mesmo lugar. Encontrei com Paulo por algumas vezes, e o
esperei sentada no banco na tarde de uma quinta-feira ensolarada quando percebi
que ele não viria. Mesmo antes da hora dele aparecer eu sabia que ele não viria.
Com meus novos olhos poéticos descrevi seu sumiço como uma “visita particular e demorada á alguém
especial que queria muito me ver também, mas não agora.”
E assim descobri - por caminhos
totalmente contrários aos que imaginei - que minhas palavras viriam através dos
meus olhos, meus pensamentos e meus atos, vinham do meu eu, do meu interior,
fruto da minha personalidade e fruto de tudo o que eu já havia experimentado.