terça-feira, 10 de junho de 2014

Olhos para que?


Sempre ouvi de meus professores que eu deveria apresentar meus trabalhos, escrever meus textos ou responder as questões com minhas próprias palavras. Pensei então, no quanto difícil isso seria. Não que eu não soubesse o que eles queriam dizer com isso, mas a verdade é que era muito difícil descrever algo com minhas próprias palavras, já que todas as palavras que eu sabia não eram minhas.
Apesar de tanto pensar sobre isso, nunca consegui entender o porquê de todas as palavras que eu sabia já terem sido faladas por outra pessoa. Decidi então buscar o motivo, a resposta para a então grande questão da minha vida.
Devorando os livros infanto-juvenis, passando horas e horas debaixo das cobertas apenas com a cabeça e a mão segurando o livro para o lado de fora do edredom, tive contato com vários mundos e várias pessoas até então desconhecidas, tive emoções boas e ruins, todas através das palavras de outra pessoa, que se fixavam na minha mente de forma integral.
O tempo passava e eu me questionava sobre o porquê de minhas próprias palavras não existirem. Seria falta de personalidade própria? Seria mesmo que eu realmente não tinha dom, vocação, ou sequer uma pequena inclinação para a coisa? Já não estava contente com essa falta de respostas.
Numa dessas tardes de devaneio, peguei o papel e a caneta para ver se conseguia rabiscar algumas palavras, alguma coisa vinda de dentro, do fundo da alma, assim como lia nas poesias antigas de Drummond. Cheguei a pensar que o ópio de muitos autores talvez pudesse ter-lhes trago alguma inspiração, alguma lente de contatos que pudessem abrir a visão para um mundo novo, um novo conceito de realidade descrita com minhas próprias palavras. Cheguei até a esboçar alguma coisa, mas não consegui dar continuidade, afinal, não havia o que escrever, não havia o que contar. Decidi então sair.
Caminhando pela beirada do rio, observando a paisagem calma e serena de um lado e a cena mais tumultuada, suja e barulhenta do outro lado da rua onde carros, caminhões, motos e tudo o mais que pudesse tirar a paz de um sujeito em busca de um pouco de natureza. Eu não conseguia entender como esses dois polos tão diferentes poderiam estar tão perto.
Avistei então, entre as árvores - mais para o lado do rio que para o lado da pista - um banco de madeira livre e decidi me sentar. O banco estava vazio, mas havia lugar ali para mais duas pessoas. Aproveitei para me acomodar como queria e observar um pouco o rio e suas curiosidades, havia tempo que eu tinha estado ali. Vagando em devaneios, quase me esqueci da hora, já estava entardecendo e o sol começava a baixar. Olhei para a linha vermelha do horizonte admirando a perfeição com que os detalhes da natureza eram mostrados todos os dias, então quando me virei novamente, avistei ao meu lado um homem.
No começo não me preocupei muito, ali não era um lugar perigoso e havia muita gente passando por ali naquele momento, mas o homem parou bem na minha frente e pediu para se sentar. Seus óculos escuros não se curvaram na minha direção, continuaram direcionados para o horizonte, foi então que eu pude perceber que ele era cego. Então, cheguei para o canto e disse que sim, o homem devagarzinho se sentou ao meu lado e tirou uma sacola da pochete que carregava na cintura. Um por um, começou a jogar pequenos pedacinhos de pão de milho para os passarinhos que ali pousavam.
Aquilo me despertou o interesse. Apesar de ser cego, o homem sabia que eu estava sentada no banco e sabia também que ali havia passarinhos para comer suas migalhas. Como isso seria possível? Então decidi perguntar, entre tantas dúvidas, aquela eu não poderia deixar passar.
Como o senhor sabia que eu estava sentada no banco?” – Perguntei. O homem colocou um dos pedacinhos de pão na própria boca e só respondeu quando acabou de mastigar.
Eu vi.” – Respondeu o homem com a mesma calma com que mastigava. Aquilo me encabulou.
Viu? Mas o senhor não é.....” – Antes que eu pudesse continuar a frase o homem completou-a para mim.
Cego? Completamente.” – Colocou outra migalha na boca e só continuou a falar depois de engolir. “Mas sou cego só com os olhos.”
Aquelas palavras me atordoaram. Como ele poderia dizer essas coisas com tanta convicção? Como ele poderia enxergar se não fosse com os olhos? No meu silêncio imaginei o que o homem teria vindo fazer ali, o que o atraiu ali, logo onde eu estava?
Vim passar o entardecer, como faço todos os dias” – Começou o homem vagarosamente enquanto eu o fitava com olhar de gavião, curiosíssima a respeito daquele completo estranho. – “E nunca te encontrei por aqui. Você me parece um tanto quanto atordoada. O que te preocupa?”
Impossível. Ele não era cego. Eu estava disposta a ir onde fosse para provar para mim mesma que aquele homem não era cego. Na verdade eu desconfiava também de que ele não era nem humano.
Vim passear, estava precisando respirar, sair de casa.” – Respondi entre os dentes. Ele não entenderia o que eu estava passando, afinal, não tinha sentido um cego ler ou escrever.
Isso é um tanto quanto clichê, todos que passam por aqui sempre estão em busca de paz, coisa que parecem não encontrar em casa.” – Disse o homem com propriedade, tão certo do que falava que me surpreendeu.
Alguém te falou isso?” – Perguntei ao homem me sentando mais perto e observando os pombos que estavam se aglomerando no chão. Eu odiava pombos, nunca vi animais mais porcos. Talvez ele não pudesse perceber, mas tinha tanta migalha no chão que os pombos começavam a fazer uma festa particular.
Não, eu mesmo percebo. Não preciso que alguém me fale algo para sair repetindo, menina. O que há com você? Não sou um monstro de outro planeta, sou apenas... cego.” – Apenas cego! Ok. Era o suficiente. Como uma pessoa que era apenas cega poderia me dizer tais coisas com tanta riqueza de detalhes?
Mas como sabe de tudo o que acontece a sua volta? Como consegue descrever tudo com tanta... poesia, mesmo sem enxergar nada?” – Questionei buscando finalmente uma resposta. O homem pela primeira vez me pareceu surpreso com alguma coisa que eu dissera, guardou o saco de migalhas e cruzou as mãos em cima do colo.
Posso não enxergar com os olhos, mas tenho algo dentro de mim que nada irá tirar. Já vivi um pouco antes de me tornar cego, e o pouco que vi me mostrou que a vida precisa de um toque doce para sair da inércia.” – Disse-me o homem devagar, depois coçou a barba por fazer e suspirou. – “Talvez se eu tivesse meus olhos não teria tanta coisa para dizer.”
“Como assim?” – Questionei-o. Eu ficava a cada momento mais confusa com aquilo tudo.
O homem suspirou, parecia procurar as palavras apropriadas, ou talvez as próprias palavras. Tudo nele me parecia um tanto quanto estranho, diferente, até a atmosfera ao seu redor era mais macia, menos densa. Em determinado momento até os pombos deixaram de me incomodar.
Quando se tem olhos, costumamos pensar que todas as coisas que há no mundo estão ao alcance de nós só porque nós podemos vê-las. Mas não estão. – Disse o homem. – Devemos tocar, devemos tocar o barro para saber que textura tem. Devemos saborear a maçã para saber que gosto tem. Não adianta que nos falem como é o doce, nunca vamos saber se até hoje só provamos coisas de sal.”
“Então tudo o que diz é com suas próprias palavras? Ou melhor, tudo o que você diz é derivado daquilo que já experimentou?” – Perguntei finalmente chegando ao ponto onde queria. Fazendo pela primeira vez a pergunta adequada, já não me preocupando mais se o homem era estranho ou não.
Claro. Como não se pode enxergar com os olhos de alguém, não se pode também viver experiências de outras pessoas. – Respondeu-me – Se realmente quer encontrar suas próprias palavras, não se restrinja a ler as experiências alheias. Viva suas experiências e as escreva, assim, essas serão suas próprias palavras.”
Quando terminou de falar o homem virou a cabeça em minha direção como se realmente conseguisse me enxergar. Tirou os olhos, o que me permitiu ver o azul de seus olhos. Era realmente uma pena que olhos tão bonitos não pudessem enxergar tudo de belo que há no mundo. Após aquele encontro, quase todos os dias eu estava naquele banco daquele mesmo lugar. Encontrei com Paulo por algumas vezes, e o esperei sentada no banco na tarde de uma quinta-feira ensolarada quando percebi que ele não viria. Mesmo antes da hora dele aparecer eu sabia que ele não viria. Com meus novos olhos poéticos descrevi seu sumiço como uma “visita particular e demorada á alguém especial que queria muito me ver também, mas não agora.”

E assim descobri - por caminhos totalmente contrários aos que imaginei - que minhas palavras viriam através dos meus olhos, meus pensamentos e meus atos, vinham do meu eu, do meu interior, fruto da minha personalidade e fruto de tudo o que eu já havia experimentado.